Deixa eu escrever antes que eu me esqueça (como acordar repetindo um sonho pra não deixá-lo fugir).
Ainda estou com o nariz vermelho, de chorar. Pois é, chorei. Na rua, duas vezes, engolindo e deixando o narizão avermelhar, quando passei numa quadra menos movimentada. Carregando o meu skate, pesado, pendurado atrás das costas pelos braços. Chorava a cada vez que imaginava não mais usá-lo. Ai.
Voltando pra casa, à pé, sábado de sol maravilhoso, um fim de tarde, que eu adoro, ao ar livre, sol na pele, corpo em movimento. Pois bem, eu falo.
...Como é que se fala de uma angústia? Violência, segregação, roubo. Me senti roubada, alijada de um direito. Como é que se fala de uma coisa que, ao mesmo tempo, sei que não vai ter solução, não vai voltar atrás, que não adianta reclamar?
Uma pracinha. Especial. Uma pracinha gostosa. Duas quadras de eucaliptos, só com casas ao redor, e asfalto lisinho, com uma inclinação suave o suficiente para ser perfeita para andar de skate. É, eu tenho 30 anos e ando de skate, ainda. Mas só nessa pracinha. Perto de casa, sol gostoso, poucos carros passando, nossa... Uma praia. Eu ando de skate no estilo "masters", digamos. Significa que não faço manobras arriscadas, nem piruetas, nem derrapagens. Não tenho mais idade, físico, pernas nem dedicação para tanto. Uso um skate chamado longboard. É maior do que o convencional (o das acrobacias) e anda mais suave. Explico.
Ele desliza suave o suficiente para descer as duas quadras da pracinha em ziguezague, fazendo um "S" infinito, de um lado ao outro da rua, dobrando os joelhos de leve nas curvas, sem chegar a derrapar. O vento no rosto, o asfalto passando embaixo dos pés, o corpo em perfeita harmonia com o skate, a onda. É um zuuum, uma dança, um bailado pracinha abaixo, até chegar ao sinal no fim da rua. Aí, na última curva completo o círculo, quase sempre com os dois braços para o alto, agradecendo a Iemanjá. É como surfar. Como deve ser surfar, porque eu nunca surfei.
Não tenho grana, tempo, casa na praia, prancha nem braço pra surfar. Mas de vez em quando escapo da vida urbana e curto um fim de tarde na minha praia, logo ali, a pracinha perto de casa. Fazia uns três meses que eu não ia. Hoje, fui à pé. Carreguei o skate nos braços pelo bairro. É difícil andar de skate nas ruas de São Paulo. Tem muito carro, o asfalto é grosso demais, as calçadas são quebradas, enfim, não dá. Menos ainda com um long como o meu. Só na pracinha.
Quando a alcanço, pela rua debaixo, estranho não ver ninguém de skate. Mal dá tempo de imaginar o porquê, e vejo. O horror. A violência. A sacanagem. O roubo. Violentaram o asfalto lisinho da praça com uma faixa de paralelepípedos, de dois metros de largura, de lado a lado da rua. Como se fosse uma lombada, mas no mesmo nível do asfalto. Apenas o suficiente para impedir um skate de passar. Para os carros, tudo certo, é claro. Não acredito. A rua é de quem? Deles? Como assim?
Não é apenas uma faixa. A cada dez ou vinte metros vejo um mata-burros para skate, na praça toda. Apenas o suficiente para impedir a evolução, o vento no rosto, as curvas, a harmonia.
E para impedir, dirão os donos da rua, a bagunça nas tardes de sábado e domingo, o barulho das derrapadas, o auê de moleques dependurados nos carros, de carona pracinha acima. Ou, ainda pior, as pichações, a maconha. Nem todos são pichadores, nem todos fumam maconha. Mas todos são, ou eram, moleques querendo algum desafogo. Um pouco de rua, de sol, de paz.
Agora já era. Me senti como uma mal vestida impedida de entrar no shopping center. Sabe humilhação? Mas pior, porque é na rua. Na bendita rua, último refúgio da urbanidade, da convivência, da tolerância, do vento, das curvas.
Ai, estou triste demais. Com a cidade, com a vida, com a lembrança horrível de quando uma vez, criança, eu perguntei para a minha mãe o que eram aquelas notícias no jornal e ela disse: "É que o mundo é assim, filha, vai ficando a cada dia pior". Passei a vida tentando não concordar com isso. E envelheço. Tenho 30 anos e descubro que não posso mais andar de skate num sábado ensolarado, na pracinha do bairro. E choro. Acho que ainda sou criança. Tanta porrada na vida e ainda choro, ainda lamento, ainda sento aqui pra escrever sobre isso. Tentar gritar.
Antes de caminhar de volta pra casa, refiz o trajeto da descida uma última vez. Com os pedacinhos que sobraram de asfalto liso. Começa, faz duas curvas, pára. Pega o skate, anda três passos, volta. Faz duas curvas, repete tudo. Até o fim. Uma despedida terrível, que me fez e me faz, de novo, chorar aqui. Não tem mais surf na cidade. Não tem mais pracinha. Agora ela é dos que residem em frente e, provavelmente, entre si, votaram pelo fim da maloqueirada do skate. Marginais.
Quando estou triste, às vezes me vem na cabeça a melodia de alguma música. Sem perceber, começo a cantarolar o verso e ele sempre traduz o que estou sentido. Hoje, uma pichação também ajudou. Dizia "flor do meu sertão", como as pichações dos anos 80, que diziam coisas. E a música veio. Mutantes. "Adeus, vou-me embora, pracinha, fulô do meu coração. Eu voltarei qualquer dia, é só chover no sertão".
E a seca mal começou.
Marcos Lima - " Nós somos a soma das nossas decisões."
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